VIVO, MAS MORTO

VIVO, MAS MORTO
por Broto Verbo

Nas minhas costas carrego o dolo do meu passado,
e trago escrito na pele a história do meu destino.
Nas minhas veias turvas deambulou sangue irado,
e neste peito a saudade badalou como um sino.

Nos olhos proibi cor, viram só a preto e branco…
E desta boca a peçonha tresandou como num charco.
O teu cheiro guardei nos dedos como um troféu cintilante
e o fastio deste ventre avolumou num grande fardo.

Lanceto a carne por dentro cavando um meigo aconchego,
fazendo daí o recanto para o meu porto de abrigo.
Corro correndo a correr, vendo sem nunca alcançar
todo o meu tino que me escapa fugindo num galhofar…

Na má sina do meu fado o choro é quem mais ganha espaço.
E o tempo todo deste mundo nas minhas mãos a findar…
A cruz é mesmo tão pesada e o esforço é muito o que faço.
Vivo ou morto o que eu mais quero, é não mais cá querer ficar...

Se eu encetar este caminho, depositando na fé,
fé de que vou conseguir, por fim, o azul abraçar;
será que as portas deste céu, no alto do seu altar,
mesmo sabendo quem eu sou, assim me deixarão passar?

Acendam a chama, que pega o fogo, que fere o meu corpo,
sem alma… Vivo, mas morto.



MORAL

MORAL
por Broto Verbo

Se de mim me querem longe,
porque de pecado me basto,
de mim então não me afasto.

Deixai-me devasso continuar,
que da vossa moral não me faço…

SACO VAZIO

SACO VAZIO
por Broto Verbo

De mim não quero nada.
Porque eu nada tenho que me interesse…
Quisesse eu tudo!

Sou um saco vazio…
Sou um saco vazio!
Sou um saco vazio alarve!!!
Sem asas por onde alguém o agarre…
Sou um saco vazio…
Sou um saco vazio!
Sou um saco vazio alarve!!!
Ao degredo devoto a minha carne…

De mim não quero nada.
Porque eu nada tenho que me interesse…
Quisesse eu tudo!
Mesmo que esse tudo,
fosse o pouco que em mim houvesse…


Broto Verbo - Saco Vazio (2007)

METAMORFOSE

METAMORFOSE
por Broto Verbo

Suspiro. Inspiro. Expiro.
Suspiro. Inspiro. Expiro.
Volto a suspirar, volto a inspirar, e volto a expirar.
Repito-me, exaustivamente, numa exaustão obsessiva.
É este o regime totalitário das angústias,
o governo despótico das inquietudes.
Por fim, derrotado pela vitória, desapareço-me numa implosão final,
atingindo o solo faminto, com a ruína dos meus fragmentos.
Aí, do magma que ainda de mim sobra,
renasço em seiva que aduba a terra,
alimentando outras vidas, que em pedaços de mim se transformam.
Há mais de mim agora noutros,
do que quando de mim eu era só.

SONO DE ACORDAR LEVE

SONO DE ACORDAR LEVE
por Broto Verbo

Estou num sono de acordar leve,
procurando o sono de um dormir profundo.
Tenho um cansaço de um explicar difícil,
e uma dormência de um pasmar possante.
Sinto a flor da pele vigilante,
como se de um qualquer alguém, a um qualquer momento,
um qualquer toque esperasse…
Um alerta constante, nascido de um imutável híbrido
entre uma lucidez baça e um torpor de cristal nitidez…

Será este, porventura, o palco dos limbos?
Um hiato que nos expõe à vigília de uma qualquer
triagem divina, que nos remeterá à luz ou à treva?
A morte que me traga a resposta o quanto antes,
antes que eu em definitivo adormeça…

VIOLAÇÃO

VIOLAÇÃO
por Broto Verbo

Culpa-me! Julga-me! Castiga-me!
Em todos os minutos peco, pelo menos, sessenta vezes,
porque a cada segundo que passa
te assalto com a mais voluptuosa das vontades,
e com o mais libidinoso e insolente dos desejos.
Desculpa violar-te assim, desta maneira...

THISCUTIR THISPARIDADES

THISCUTIR THISPARIDADES
por Broto Verbo

Aqui me THISpo em parte, porque isto muito de mim THIS:
Sempre fui THISplicente com a THISciplina. Tenho dificuldade em THIStingui-la, e por isso, não possuo argumentos que me permitam THIScerni-la com exactidão. Aventurar-me na sua THIScussão é... “chover no molhado".
Por vezes, sinto que sou um THIScípulo da THIScórdia, que procura respostas THIScretamente no lado oposto do vigente. Não que me sinta THIScriminado, mas há sempre uma sensação de THIStinção negativa. Eu bem que podia THISfarçar e compactuar com todos os preconceitos e com todas as normas pré-estabelecidas, mas nunca fui capaz de THIScursar prosas politicamente correctas só para “ficar bem na fotografia”, nem tão pouco THISferi juízos que, em consciência, não fossem, sob o meu ponto de vista, justos.
Houve quem me tentasse THISsuadir desta forma de estar THÍSpar, mas com o passar dos anos acho que ganhei um lugar próprio entre os que me rodeiam. Não sei se não me incomodam por THIScrição, ou se realmente existe um respeito que não é, de facto, THISsimulado. Gostava mesmo, gostava mesmo mesmo mesmo muito, de acreditar nisso…
Sempre estive THISponivel para uma boa THISputa de ideias. Não sou daqueles que THISpara em qualquer direcção “só porque sim”. THISpenso a charlatanaria e não suporto nem THIScursos facciosos nem THISsertações bacocas. O conhecimento não ocupa espaço e não há maior THISsabor que a tacanhez. Sempre manifestei THISponibilidade para a aprendizagem e nunca me acanhei perante a dúvida. THISsecar sobre determinados padrões ou normas é coisa que me excita. E quanto maior for a THISsonância do oponente mais gozo tenho. É necessário, porém, THISsipar quaisquer dúvidas: não sou do contra apenas porque sim. Sou-o (quando o sou) por convicção. THISso tenho a certeza! Há quase sempre uma THIStância entre a minha forma de estar na vida e a da maioria das outras pessoas. É um fosso THIStinto que, simultaneamente, nos separa e personaliza. E quando há sintonia, num ou noutro gesto, numa ou noutra ideia, comportamento, ou atitude, não é por minha THIStracção ou THIStúrbio. Acredito que seja por… coincidência! Afinal de contas, qual das nossas realidades é a mais THIStorcida?

Aqui me THISpus assim em parte, porque muito THISto sou eu…



Para as Antologias Literárias Occulturais "Antibothis"
da THISCO Associação Cultural

em parceria com a Associação Chilli com Carne

HOJE SOU EU QUE PRECISO

AMANHÃ TU, HOJE SOU EU QUE PRECISO
por Broto Verbo

Na terra seca onde a poeira se levanta,
com o passar leve, mesmo ao longe, de uma brisa,
cravo os meus dedos que se tornam alavanca,
abrindo o chão que aqui, raro, se pisa…

Uma semente eu coloco lá no fundo.
Neste buraco, penso eu, há-de singrar!
Quando a colher, por fim, se espante o mundo,
com o poder colossal do seu curar…

Mas que especial atributo afinal tem,
que esta diferença possa assim ela fazer?
Não é segredo que se esconda de alguém,
daqui a pouco toda a gente o vai saber…

A terra seca que eu refiro no começo,
onde a poeira, de tão fina, não se prende,
é a letargia de algum povo que eu conheço,
elucidado a disfarçar que não entende…

É tempo, pois, de incutirmos a magia!
A tal semente da qual eu falava então…
Unirmos esforços, todos juntos, pra que um dia,
do sofrimento nem reste a recordação…

Esse buraco em que vai ela germinar,
é a nossa mente com toda a sua virtude,
que na soberana figura do seu pensar,
talha estes feitos de tão gigante amplitude…

E o milagre espalha-se como um contágio!
Amanhã tu, hoje sou eu que preciso.
Era afinal a dita cura um presságio,
de um acto nobre, tão grande, quanto conciso.

Nesta partilha que nos salva uns e outros,
deste mal vil que nos fere a qualquer momento,
um agraciado, deste burgo ou mesmo doutros,
não esquecerá quem lhe atender seu chamamento…

Singra a semente, seu poder não se especula,
criando neste, um universo de outra cor.
Do baixo dorso quem de si doa medula,
também se dá como um pedaço de amor.



Para a iniciativa "Solidários até à Medula"
Campanha para a APCL
(Associação Portuguesa Contra a Leucemia)

AUTO-RETRATO

AUTO-RETRATO
por Broto Verbo

Sou o veneno que fede nos calabouços da humanidade.
Sou um pedaço de carne sem qualquer idoneidade.
Sou o dejecto que inspira todo acto criminoso.
Sou o logro que engana, infame e orgulhoso.
Eu sou o azeite e o vinagre, sou o sal e a pimenta.
Sou a inveja e sou a ira, e a ganância que se ostenta.

Sou o disfarce que finge que tudo parece verdade.
Sou um espelho embaciado, sou reflexo, e sou vaidade.
Sou cão que morde e ataca, pelas costas, o seu dono.
Sou gula, preguiça e luxúria, e do pecado tenho o trono.
Eu sou dia e sou a noite, sou o sol e a tempestade.
Sou o teu vizinho da frente, e o meu nome é Sociedade

CROCODILO

CROCODILO
por Broto Verbo

São de quartzo as que em mim há,
e lapidadas a diamante.
São ferozes como cascatas,
cíclicas como as marés.
São como cânticos de asfixia,
são como ordens por decretar.
São suspiros calafetados,
são enigmas por decifrar…

São lanças as que em mim há,
e debruadas a alfinetes.
São a voz do corpo inerte,
a matéria que de mim cheira.
São como angústia em desatino,
são como normas a desregrar.
São condutas que se desdenham,
são impulsos por dominar…

São de ácido as que em mim há,
e de sabor a coisas mil.
São o desfecho da matemática,
ateísmos da humanidade.
São como cárceres de toda a história,
são como sentenças de várias razões.
São a celeuma das utopias,
são a ciência das convulsões

São bugigangas as que em mim há,
de pechisbeque paquistanês.
São a cólera das ironias,
o complexo das indecisões.
São como metáforas do cepticismo,
são como embustes da realidade.
São vasto antro libertino,
são fátuo fogo de leviandade.

Estas lágrimas...
de crocodilo.

BANQUETE

BANQUETE
por Broto Verbo

O ornamento de morte que algozes trouxeram,
enfeita a noite de chaga aberta.
O homem grita numa voz muda,
que se faz sentir entre gestos de agonia…
Lamentos sussurrados entre corujas e cotovias.
Lânguido ímpeto das vontades que ainda imperam.
Golpe irreversível…
Prémio de consolação de quem iguais destinos perpetrou.
Já não há reflexos, tão pouco há noções.
Inércia dos nervos…
A morte…

Depois…
Depois o sol brilha,
queimando lentamente o corpo prostrado nas areias…
Atentos, os abutres rejubilam com o espectro de banquete.
Mal sabem o veneno que os espera…

NÃO ME PERTENÇO

NÃO ME PERTENÇO
por Broto Verbo

Se teus são meus olhos que vês,
e se teus são meus lábios que beijas;
se teus os desejos que sinto,
e se tua é minha alma que aviva;
diz-me então de que moléstia padeço,
se mesmo assim não me mereço?
Se ao meu corpo não me pertenço,
que ao menos em ti eu sobreviva.

QUEM CEGO SE QUER

QUEM CEGO SE QUER
por Broto Verbo

De que fonte bebo eu esta água que embriaga?
Cego sou e não distingo sua cor e seu pingar…
Se inquinada ela estiver sujeito eu estou a morrer!
Goteja em fio a pinga fresca que sacia o meu beber...

Se nesta fonte eu encontrar o elixir que me infinita,
louvo graça à sua linfa na prova da sua cura.
Da cegueira eu me despeço dando vivas ao olhar,
que de ver tenho saudade e muito mais em contemplar.

Enxergo agora em meu redor a realidade que circunda.
Treme a pele no calafrio que estremece este meu corpo.
Ter que ter esta noção tão cruel e tão imunda
de que vale mais nesta vida fazer de conta estar morto…

ARDÓSIA FRIA

ARDÓSIA FRIA
por Broto Verbo

Fiz da minha vida cartão negro de visita
sem que desse feito desse conta.
Qualquer sítio me daria para morrer
se não vivesse agora da morte fugindo!

Qual o giz que traça firme o meu destino?
Em que quadro escrevo eu o fado certo?
Sucumbe a cor na ardósia fria
ou é da letra pequenina?
Será da trémula caligrafia?

Devo ser eu que estou tão longe
que as palavras não decifro…





Broto Verbo - Ardósia Fria (2006)

COBARDICE

COBARDICE
por Broto Verbo

Que doença é esta que me amputa a razão,
me cria demência, e faz de mim o que eu não sou?
Ou serei eu assim sem nunca perceber que sempre o fui?
Animal selvagem, alquimista fingidor,
estratega sem rumo e de estirpe duvidosa.
O tempo passa neste emaranhado que aumenta…
Será que aguento esta tormenta?
Quando me serena esta demanda?
Que terrível é, ter tanto para dar e não poder,
porque assim foi convencionado…
Falsa moralidade…
Que me resta, afinal, nesta existência?
Se o sono eterno me aliviasse…
Sou tão covarde que nem esse dormir consigo.

SANATÓRIO DOS FERROVIÁRIOS

SANATÓRIO DOS FERROVIÁRIOS
por Broto Verbo

Numa encosta virada para a Gardunha,
sinistro se ergue, imponente, em plena Estrela.
A seus pés, a Covilhã e a Cova da Beira,
que o vislumbram, na distância, como um fantasma...

Centenas de janelas como olhos para os jardins.
Cacos de vidro na brita que se espezinha...
Sentenciado pela agonia do abandono
cruel se corrói, se mutila, e se definha...

Pérfido cheiro de águas estagnadas.
Passado que jaze no leito dos medos...
Em frente, pode mergulhar-se num poço,
onde se depositaram lágrimas e segredos...

Paredes que encerram histórias de morte...
Portas que rangem gemidos sem norte,
e uma cave obstruída por amálgamas de entulho
onde, dizem, se aconchega a morgue...

Labirínticas alas a perder de vista
entre divisões simétricas e infinitos corredores.
Escadas podres com caruncho a descoberto,
e fossos desocupados onde funcionaram elevadores.

O vazio que enche o devaneio de sombras.
Lacradas memórias, imaculadas e por desvendar...
O passo que se alarga à frente do arrepio,
e para trás, sussurros e vozes que se fazem ecoar...

FOLHA DE PAPEL

FOLHA DE PAPEL
por Broto Verbo

Enquanto a noite, tenra, se põe…
Enquanto aguardo que a digestão se resolva…
Espicho palavras numa folha de papel
que, fustigada pela caneta,
perde virgindade e candura imaculadas,
e se abre à tinta que a fecunda…

Abandona-se, assim, ao devaneio;
deixando-se dominar sem protesto ou resistência…
Nela, tatuam-se linhas ao acaso;
conjugam-se verbos à desgarrada;
carimbam-se dores, receios e paixões;
riscam-se erros de forma irada…

Submissa, ensaia actos de revolta,
contorcendo-se num esquivo balancear…
Alucinação, realidade, desordem ou delírio?
É ilusão, o motim da matéria que vejo?
Permito a fuga, ou castigo tão ousada insurreição?
É a dúvida que me pune tamanha indecisão…

Quantas formas tenho de a torturar!...
Crucifico-a com pioneses na parede luzidia…
Rasgo-a lenta e aprumadamente
com requintes de malvadez…
Amarroto-a quebrando-lhe a firmeza,
ou ateio-a aos horrores de uma chama?

Se a solto, de mim se aparta companhia…
Do calor da mão que a aprisiona
transpira um cheiro a negrito refogado
que a humedece manchando-a de gordura…
Sacudo-a ao vento da janela que abro,
num gesto claro de compaixão e ternura.

Chamam-me lá de fora do quarto!
Está na hora de partir para a folia
de mais uma noite que já vai alta…
A digestão, morosa, fez-se à revelia
do pensamento entretido numa folha de papel,
que se encerra agora numa gaveta escura e fria…