FOLHA DE PAPEL
por Broto Verbo
Enquanto a noite, tenra, se põe…
Enquanto aguardo que a digestão se resolva…
Espicho palavras numa folha de papel
que, fustigada pela caneta,
perde virgindade e candura imaculadas,
e se abre à tinta que a fecunda…
Abandona-se, assim, ao devaneio;
deixando-se dominar sem protesto ou resistência…
Nela, tatuam-se linhas ao acaso;
conjugam-se verbos à desgarrada;
carimbam-se dores, receios e paixões;
riscam-se erros de forma irada…
Submissa, ensaia actos de revolta,
contorcendo-se num esquivo balancear…
Alucinação, realidade, desordem ou delírio?
É ilusão, o motim da matéria que vejo?
Permito a fuga, ou castigo tão ousada insurreição?
É a dúvida que me pune tamanha indecisão…
Quantas formas tenho de a torturar!...
Crucifico-a com pioneses na parede luzidia…
Rasgo-a lenta e aprumadamente
com requintes de malvadez…
Amarroto-a quebrando-lhe a firmeza,
ou ateio-a aos horrores de uma chama?
Se a solto, de mim se aparta companhia…
Do calor da mão que a aprisiona
transpira um cheiro a negrito refogado
que a humedece manchando-a de gordura…
Sacudo-a ao vento da janela que abro,
num gesto claro de compaixão e ternura.
Chamam-me lá de fora do quarto!
Está na hora de partir para a folia
de mais uma noite que já vai alta…
A digestão, morosa, fez-se à revelia
do pensamento entretido numa folha de papel,
que se encerra agora numa gaveta escura e fria…
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