A IMPORTÂNCIA DAS COISAS
por Broto Verbo
Automóveis de grande e pequena cilindrada, camiões com e sem reboque, autocarros, auto caravanas, motos, e até ambulâncias, numa orgia brutal de chaparia, vidros e compostos plásticos… Era assim pintada aquela manhã de tragédia, com corpos quase vivos e outros quase já mortos, presos nos destroços, entre o nevoeiro cerrado.
A chiadeira dos ferros retorcidos, conferia aos escombros uma verdadeira sinfonia de música industrial, espectro de eleição ao palco de horrores, ambiente sonoro adequado ao cenário de mutilação. No ar, misturado com o odor de carne esmagada, o aroma a queimado dos pneus, das fibras, das tintas, das cargas a arder nos contentores dos semi-reboques, das mercadorias dos carros comerciais, dos produtos inflamáveis dos transportes perigosos, do gado encarcerado nas galeras frigoríficas, e de alguns corpos já carbonizados, davam as boas-vindas aos primeiros socorristas. Os bombeiros, voluntários bravos que, qual pelotão suicida, tantas vezes arriscam a vida de um modo assombrosamente altruísta, chegaram poucos minutos depois dos condutores e motoristas que vinham imediatamente atrás do último veículo sinistrado e que, com a sorte dos deuses, foram os primeiros a dar graças, por também eles, de forma claramente milagrosa, não estarem envolvidos no desastre...
O nevoeiro intenso levantara entretanto, hasteando uma espécie de bandeira das tréguas, reduzindo drasticamente o perigo de novas colisões. No asfalto não estavam desenhados os habituais vestígios das travagens, indício evidente de que os obstáculos não foram avistados a tempo de qualquer reacção, e de que os embates teriam sido revestidos de uma força medonha e absolutamente descomunal.
A azáfama era tanta que ninguém tinha mãos a medir. O tempo jogava a favor da morte, e à fusão dos cheiros que pairavam na brisa, juntava-se agora também o do acre vómito dos mais susceptíveis. Aqui e ali multiplicavam-se os desmaios, as sincopes, as taquicardias, os enjoos, os desfalecimentos, os choros, os gritos, as lamentações, os semblantes carregados. As ambulâncias chegavam em catadupa, as unidades especiais de desencarceramento não tinham nem elementos nem ferramentas suficientes para acorrer a tanta solicitação simultânea. A cor dominante era o vermelho, e tal evidência não carece de explicação…
Lentamente, da descoordenação total, passou-se a um género de caos organizado, para depois, paulatinamente, atingir um estado de calmaria singular, uma espécie de paz podre, uma bonança de conformismo. Uma vez acudidas quase todas as vítimas humanas e demais sinistrados, chegava agora a vez dos peritos das companhias de seguros entrarem em acção, filmando e fotografando ao pormenor, num desempenhar quase cinematográfico. À medida que eram cartografados os embates e registadas as matrículas das carcaças envolvidas no funesto acontecimento, a polícia dava ordem para entrarem os pronto-socorros que, numa metodologia exemplar, recolhiam os esqueletos de ferro, desimpedindo, num ritmo surpreendente, uma das três faixas de rodagem. Ao mesmo tempo, os pesados iam sendo removidos por gigantescas gruas que os içavam com uma facilidade admirável, depositando-os na berma, alguma da qual também ardida, devido aos diversos fogos que eclodiram e se propagaram após os embates. Entretanto, um verdadeiro batalhão de limpeza usava jactos de água para limpar detritos, empregando simultaneamente uma substância química que diluía o óleo, livrando o alcatrão de mais uma armadilha mortal. A meio da tarde, duas das três vias já estavam perfeitamente transitáveis. A terceira continuava fechada. No quilómetro 98, permaneciam três veículos que não tinham sido devorados pelas chamas e que ainda davam trabalho às equipas de socorro. Os tejadilhos estavam ao nível das costas dos acentos, os pneus rebentados pelas jantes em estilhaços, vidros nem vê-los, e as carroçarias mais pareciam um trio de acordeões fechados. Mas, pelos gemidos de arfar mudo que de lá de dentro vinham, ainda havia vida...
O balanço deste fatídico e memorável choque em cadeia na principal auto-estrada do país foi, no mínimo, de uma notável escabrosidade: 247 veículos acidentados, 37 mortos, 133 feridos, dos quais 59 em estado grave ou muito grave.
À noite, todos os telejornais, sem excepção, abriram com a notícia de que um jogador nacional se lesionara com gravidade num trivial exercício de treino, exactamente no dia em que a FIFA o consagrara como o melhor futebolista do mundo. Uma desgraça, de facto.
2 comentários:
A "nossa" cultura...
Tenho um post agendado para dia 12 de Outubro.
E o tema bem que podia ser esse.
Não é feriado, não é dia mundial de nada.
Existem dias bastante famosos, como por exemplo 9/11, que toda a gente diz que a partir dai o mundo nunca mais foi o mesmo... dizem, mas é só mesmo isso.
O dia do desembarque na Normandia, é que mudou o traçado da historia, em que quase três milhões de soldados desembarcaram para aquilo que viria a ser a maior invasão marítima da história.
37,000 mortos, 172,000 feridos/desaparecidos, (Wikipédia).
Mas pouca se fala. Foi carne para canhão.
Vou para o google escrever October 12, e o primeiro resultado é uma listazinha de gente notável que fizeram coisas notáveis e que morreram a 12 de Outubro.
Esta coisa de um mamífero poder ser uma personalidade é uma fenómeno curioso...
Mas ainda dentre deste grupo de gente famosa que já la vai, entre personalidades como Ricky Wilson, guitarrista dos B-52s, ou doVincent Eugene Craddoc, um Rockabilly autor de "Be-Bop-A-Lula"..., e encontrei este jovem: Matthew Wayne Shepard.
(http://en.wikipedia.org/wiki/Matthew_Shepard)
E o que fez este jovem? Alguém o conhece?
Era um jovem de 21 anos, que para além de ser um aluno exemplar era um jovem com uma capacidade notável de se sociabilizar, sempre à procura de novos desafios, e sempre mantendo uma postura de defesa em nome das diferenças sociais.
Por mim era uma pessoa notável. Fez coisas notáveis. Mas foi brutalmente torturado e assassinado.
E o que é que tudo isto tem a ver com o teu post? Para mim tem tudo a ver...
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